Cata-ventos Lunares: 2007

Mesmo lugar, outro ar, cheia de setembro de 2007.

Caro Mar:

Os primeiros tempos voltaram chuvosos. A pele estica contra a luz branca. Me dá a lembrança de apesar (não sei bem se apesar) do movimento tudo é mesmo lugar. E hoje isso é belo, pelo menos quase isso.

Daí o gosto é mistura de sonho e drogas, o gosto é melancolia acolhida. Eu procuro o silêncio enquanto procuro caminhos pra voltar. P'r'aquele lugar que chamo lar. Pôr meu corpo em rito movimento. isso me parece ser sedutor, isso soa como a própria sedução: corpo-movimento-de-rito.

Corpo-geografia-de-rito.

Não, não cabe mais ser indiferente, meu caro mesmo mar. Foda-se as rugas! Mais uma vez digo sim ao tapa! Digo sim e reafirmo forças. Não vou ressentir, não me cabe, o que posso é recriar o sentir, potencializar minha memória. O vento me come aos pedaços, e eu gosto disso, me permito ao "obsceno repasto", mas ventar é fluir, também estou criando. Comer e ser comido é um eterno gerúndio, constante transar. Reafirmar.

Reafirmar a vida. O caos, a beleza desse olho é mesmo lugar, exatamente por ser não-lugar.

Eu photografo a praia, a tua presença, quando penso no "mesmo-lugar", quando ele se fez verdade em mim. Foi um momento muito forte, extremamente. Penso em ontem, as duas pessoas que se tocam procurando pedaços do afeto que foi enterrado. É a procura mais ofegante e intensa que há. O que mais acontece? Quem cerimoniza tudo isso?

Ritualizar a morte é encantador, ritualizar é a sedução em potência.

O corpo ritualiza para catalizar os pedaços de tudo. Pedaços da memória, pedaços de êxtase (onde pulsa a sensação de novidade), pedaços do desejo.

É fantástico ver a vida como ritual. É d'uma beleza tanta que se dá a impressão de que há de estourar.

Mar, somos pedaços ou que dançam ou se arrastam ou (morrem) dormem.

"Inconscientemente" todos sabemos disso.



Na mesma àgua turva e tua, me despeço.

da sua
Eliane

Cada rei no seu baralho, lua nova de julho de 2007.

Caro Sol:
(te escrevo aos pedaços de luas novas)

[nova de maio/06]

Não acreditas no que acabo de sentir. Vento pós-chuva e um arco-íris. Mágico. Contando que ainda é manhã (estou me disciplinando a acordar cedo). Já é a segunda vez que ele nasce e morre.

A beleza não tem senso, talvez espírito, alguns motivos singulares insignificantes p’ro tudo. (manhã / é pouco da mesma coisa / do mesmo amor // tenho que... / aprender a dizer as mesmas coisas/ obrigado// manhã / extravio de ver / o mesmo / obrigado / não quero // bom começo // novo dia). Já faz muito que me justifico a beleza. Afinal, não sei quanto a ti, mas preciso de algo no que confiar e dizer "sim, eu acredito em ti".

Talvez um norte, somos tão sós, não é? Bom, a beleza foi uma das minhas escolhidas (o fato da palavra ser feminina acabou influenciando também... hahaha... mulheres, mulheres), num primeiro momento ela veio ocupar o lugar que deus ocupava em mim, agora ela já tem uma identidade bem definida em minha pele (definida, mas não pronta, a beleza se move).


[nova de julho/06]

Acredito que algo ficou estanque. Pode soar lamento, mas me abate o desencanto.
Não consigo deixar de lembrá-lo, não consigo deixar... de para que isso se repita em minha pele.
Já deixei as culpas de lado. Não sou eu, nem os outros, mas apenas movimento.

Movimento

[nova de julho/2007]

Escrever qualquer coisa que me faça crer no que sei, não? Pensava eu, felicidade, o que é? Como e onde estão os felizes? Daí lembrei de apaixonar-se, será felicidade?

Mas falei com outréns e me disseram felicidade é ter potência de criar, liberdade e espaço para criar. Quanto a tempo não se sabe, talvez ninguém tenha contado, ou tão pouco felicidade seja algo tão caro que quem tem não divide e se compartilha é com outro feliz.

tão logo, fora os pedaços, me despeço.

Eliane

Coração tranqüilo, quase-crescente de junho de 2007.

Caro Outro-além-mim

Preciso de ti, mas não é possuir, se assim puderes me entender. Preciso por uma questão de ar e movimento. É muita gente, bem sei, às vezes isso também provoca falta, mas entenda, preciso de ti.

Te considero além de mim, mas não é tão simples assim, tem o olho que bate em tua pele e volta. Por isso nada é tão fora, e nem tão dentro. Por isso... definir não traz respostas.

Hoje acordei e senti que parte desse meu outro se foi. Daí li uma antiga carta que dizia "mas há o que fazer! E fazemos! Nós, humanos, inventamos! Graças a isso somos livres, ou antes, é nisso que somos livres. Ter liberdade não é ter escolhas, mas inventar." então sorri, e me excitei com a ousadia do despertar.

Caro outro-além-de-mim, tantas possibilidades, tantas... vamos brincar de dizer, revolver, dizer metade do que posso e reinventar.

Foi um sonho bom. Não me incomoda tanto a bagunça, não tenho mais medo do que será, apenas sei que será diferente, e isso me conforta. E não importa a lonjura, estaremos sempre no mesmo lugar.
Assim breve, me despeço

Abraço

Eliane

Luz de Outono, crescente de maio de 2007

A quem bate à porta.

As janelas estão cerradas ao sul. E todas frestas insistentemente vedadas cospem em saltos radiantes de solidão. Melhor dizer escuro, toda luz que vem é suave. E suavizar é romper com a pureza.

Tentaste avisar com antecedência tua chegada, bem sei. Fui eu quem não quiz ouvir. E agora não me importa o frio que sentes com tuas poucas e poídas roupas, faz frio cá dentro também, um frio atrás das entranhas que é difícil aquecer.

Os móveis falam demais, são muitas vozes, eu como tudo, engulo seco o que me agride, mas como tudo. Fico de cama digerindo, ou bebo tragos destilados. Quase nada me serve. O vento que teima entrar ao sul dessa janela, é mais cortês quando o encontro na rua, nos beijamos, e falamos sobre o andar. E eu já não quero só andar, pretendo tão logo voar. Ele me precave sobre o perigo. Eu apenas sorrio com um olhar frio. O tudo sempre me aguarda. Há tantas possibilidades fora de cá dentro.

Sabes, o lado de fora é uma prisão com linhas. A corte está todo tempo controlando teus movimentos, maquiando teus pensamentos. O lado de fora dessa cidade é uma prisão.

Teve um amigo que saiu aos bagaços e fugido daqui. A gente acaba não entendendo bem porque isso acontece (fugir e o bagaço), mas dá pra ter um pouco de noção o quanto cá dentro se perfura.

Não insista, não vou abrir, tente outra porta de paredes roxas. Aqui só há... talvez, pedaços de mim do nada e do tudo.



Procure um abraço
Eliane

Ainda há espaço, crescente de abril de 2006.

Caro Ausente Inimigo:


Tenho tido várias idéias. Elas se perdem. Retomo fantasmas antigos, que não me esquecem... Podia ser bem um fim, mas é sempre meio.

Assistia vozes que tocavam meu olho, nada mais, nenhum outro sentido. Assistia deus, ficou silêncio.

Eram bons começos, todos eles... resolvi investir no azul, que eixo nos dá a memória?

Nada que foi escrito se perdeu, ao contrário. Os processos do criar estão todos nesse vácuo dentro da memória. Tento me preocupar com os seus rumos, de promissores começos, mas acho que é mentira, isso não faz tanta diferença, foi bom pensá-los. Foi bom o corpo em ataque.

A palavra: superfície dérmica da idéia. E resolve escrever grandes tratados para mostrar a víscera da idéia... o profundo, a minúcia? Creio que não... a víscera se mostra simples, mas não facilmente. A idéia é vôo e canto e esferas e sombras e quente e agridoce... e são poucas as formações semânticas que conseguem reter, capturar um pouco de ossos além da pele da idéia. Pois tudo é toque, singelo toque, raspando as superfícies, fazendo o novo romper a falta de cor, a falta de sentido.

“Há intervalos, mas ficam entre os sonhos e deles não resta consciência alguma. O mundo ao meu redor está dissolvendo, deixando aqui e acolá manchas de tempo. O mundo é um câncer que está comendo a si próprio. Estou pensando que, quando o grande silêncio descer sobre tudo e todos, a música triunfará por fim. Quando tudo se retirar de novo para o útero do tempo, o caos será restabelecido, e o caos é a página sobre a qual a realidade está escrita.”*

A violência é singelo toque, raspa a pele, e suja tudo de pó e sangue, pr’alguém depois sentenciar que foi tudo um equívoco. A única mesura que sinto é a intensidade. Muita sutileza... os frutos caem em meio ao calor, em meio a clones que florescem, em meio a gomos estéreis.

Se não fossem os shoppings centers, nem a vida nem a morte teriam sentido, e aí se estaria livre dos conceitos, livre dos equívocos, e livre do temor.

da também sua

Eliane Rubim



*Henry Miller

Passe de lua nova, abril de 2006.

Por último penso o destino, agora é tempo de canto. Viver essa escrita é molhar no sangue o pincel que relata crônicas de um cotidiano inventado? E por que não? A tinta é boa e o pincel tem uma insegurança que ao mesmo tempo harmoniza e defende o tempo.

Não é canto de dor, não penso que um dia foi. É pele de pensamento. Não cessa o sentenciar. Nunca acaba, o espelho terá sempre de ser quebrado, para que o sempre esteja presente.

Recordo qu’eu girava em torno de mim, ele fingia me ignorar. Subimos os montes. Não éramos morros. É difícil maturar. Às vezes pendo ao podre, talvez até caia no esgoto para sentir que sou crua. Mas não, não é essa podridão que eles falam, eu sei. Apodrecimento de mim, da pele-cabeça insistente infantil que briga com si no avesso do sorriso exposto. Encasulada choro, é difícil maturar.

É difícil quebrar meu rosto no espelho, mudo a parede, errei o soco.

Sinto algo me tomar de assalto. Vou cantar:

Baby
Red, red fire is what you breathe
Don't you want to be clean?

Daí sentamos nas pedras miúdas. Eu fiquei de joelhos, ele deitou e nos masturbou.

Don’t you want to be free?

O sol é tão quente e sozinho. Eu gosto disso. Vou tentar despir meus olhos em pensamentos. Sei que posso sentir a nudez. Sei também que “isso” não vai me matar.
Obrigada pela lembrança, nunca esqueci do destino. Escrevo para nós, minha cara solidão.


Abraço solar
da sua nova velha amiga

Eliane

Perdi as luas, março de 2007.

Caro Tudo:


Revisitei memórias, corri sem força para receber a chuva, e onde estiveste todo esse tempo? As cores e seus jogos me dão a sensação de inconstância. Sei dos teus olhos, e navego nos meus, eles sugam nuances até mesmo quando os fecho. Sempre soubeste que assim vejo melhor. Sempre...
A medida que minha nudez desaparece, os segredos perdem seu sentido. Eu e essa imensidão de pele e vísceras, tudo um organismo só, tudo um sopro. Somente. Inventamos uma língua, lembra? Era divertido, será que ainda pode ser? Não.
Me recordo da lua, a nossa comunicação feminina, o nosso movimento sincronia. Quando a lua é cheia, nunca venta.

Cuerpo Exquisito
(Massot – Muñoz – Schcolnik)


Soltó la soga y allí apareció todo
se escurría por un huequito
Desapareció. Y una gota de sangre en pulgar
le recordó las tantas historias perdidas

¿Hay un lugar donde van las cosas que pierdo?
encendedores, amores, monedas, recuerdos

Los trazos en el suelo ordenan mis pisadas. Rebelde los pies
¡Se desesperan! Solitos emprenden una danza y el ribeteo le devuelve las memorias
a centímetros del suelo, recorro un lugar
hay viejos con sombreros, olor de almendras y leche caliente. Suena música de cascabel

Mil secretos me contaron, miles las lágrimas y aún el sueño mudo
Prendo el velador para entender y los fantasmas desaparecen

un espacio vacío con paredes de inmensidad. Un cuerpo que es boca fresca,
silba la soledad.
Siempre fue el quien me dejó desnuda.


Me encanta a sonoridade do que desconheço, me encanta seu toque, me encanta tocar. A estranheza me propícia conforto e total entrega. Vamos falar sobre, ninguém tem que justificar nada, eu só quero tua esquisitice.
Tão breve, visarei estar.
Gprákhæ!
da sua
Eliane

Se correr o bicho pega, nova de março de 2007.

Caro Nada:


Não vejo os aliados. Tenho a singela sensação de nadar com tubarões. Isso não é leve, com toda a certeza.
Criei um estranho hábito de desconhecer o que me parecia cotidiano. Tenho medo de não ter mais no que confiar, me entendes? A todo instante penso sobre as sociedades de controle e a produção de subjetividade capitalística, mas não sei porque, sempre acabei por ter isso como longe da minha configuração. Pelo menos era assim, até poucos dias. Tenho a sensação que as peças da máquina de consumo estão dentro do círculo que considero sagrado, que é o círculo das amizades. Desconfio plenamente que não tenho amigos na minha volta. E isso não é nenhum tipo de paranóia, pouco tenho me drogado e bebido café.
Sinto que todos agem de forma faminta para se beneficiar, e eu fico com náuseas só de pensar. Além de sentir todos meus sonhos-de-olhos-abertos escaparem correnteza abaixo.É preciso se aliar, diz o sábio; eu o respeito intensamente, mas anda difícil... bem difícil. Eu temo ainda mais, por sentir que um dos meus fortes aliados está se entregando pelo sugo colapso do planeta terra.
Até então não tinha sentido o frio de ficar totalmente só, de peito aberto diante à artilharia.Eu preciso ser além de um pulmão, defender-me apenas não basta. Preciso do grande aliado ao meu lado, pois temo ser sugada de vez por um colapso estrutural.
Pensei muitas vezes em anular minha aliança contigo e o tudo, mas já desconsiderei. Acreditei que isso me deixaria distante “das coisas de fato”, mas isso não sou eu, isso é bobagem d’outrém. Mas também descobri que preciso de uma língua materna que me abrigue, e que ajude no meu pensar, no seu intumescimento.
Não posso fugir todo tempo... e são tantas coisas tramadas, e tudo às vezes se parece com um nó. Às vezes preciso de umas certezas... só até o corpo aquecer em entrega, depois não tenho problema em me desvencilhar e brincar com a inconstância do mundo.
Agora é quase outono, e eu ignoro o movimento dos astros e dos carros, nada se alia, todos cegos e soltos.
Sinto-me otimista.
Em silêncio te guardo
da sua
Eliane.

Quase-mofo, cheia de março de 2007.

Cara Penélope:


Um estranho veio me falar de amor e memórias. Não estranhei, apenas não pude crer em tudo o que ele falava sobre ti.
Tenho confundido pessoas com paredes, e sei que o mesmo acontece contigo. Não consigo mais com a parede da sala. A gente pensa em muitas coisas: destruir, raspar, colorir, ornamentar; pra que fique a nossa cara.
Tudo bobagem, ora querer curar memórias abertas. Paredes não são pessoas, elas são mais silenciosas quando querem nos destruir.
Mas quem sabe um dia a dor possa curar a dor. Quem sabe é isso que acontece, e eu que não me dou por conta. Estou livre agora.
E será que um dia vou conseguir me despir de mim e brincar no teu mundo?
Que rememorar deixe de ser algo tão cruel.

abraço-Te

Eliane

Sobre ti, noite nublada de fevereiro de 2007.

Cara Cadeira:

Andei pensando em como poderia me comunicar com tudo. Mas vou te contar como isso me ocorreu.Às vezes, ouço pessoas, ao redor de mim, conversando numa língua estrangeira, da qual não reconheço. Por causa do estranhamento, toda vez que isso acontece eu tento capturar esses sons, que soam quase como grunhidos.Mas tem algo do qual venho reparando. Não são somente esses sons “humanos” que me provocam estranhamento, mas vários outros, principalmente os sons que, com muita intensidade e “dificuldade”, intencionam comunicar.
Dia desses, caminhava pela beira, escutava (na seqüência) Sonic Youth, Sigur Rós, Radiohead e Mogwai, somado ao vento e as ondas do mar. Muito ruído, transe, intensidade, e uma vontade enorme de poder conversar com tudo o que sentia... tão grande que havia momentos que ficava surda, surda dos meus pensamentos.Pensava o sentir, e entrei em desespero. Chorei muito, muito. Porra de humanidade! Que língua é essa? O que nos faz crer que há comunicação? O que é isso que movimenta intensamente a ponto de fazer tudo vibrar ?Eu me sentia muito sozinha, a mesma solidão mutante de sempre. Em todos os lugares, com uma nova velha face, escondida atrás das dúvidas. E ela ria, ela e o destino. Sempre riem de mim, e não sei porque insisto em querer amizade com eles... O olhar era estático, havia beleza e leveza. Eu brincava no refluxo, cegava-me na negritude da água. Não quero me unir com gente que não respeita o que sente, não respeita o corpo, corpo-mundo, corpo-seu, corpo-d’outro.
Walking, walking, walking... the lights are on but nobody’s home, everybody wants to be a, everybody wants to be a friend, but nobody wants to be a slave.
O que mesmo eu estava querendo dizer? A quem posso comunicar isso? O que mesmo tudo isso queria me dizer?Talvez nada, mas eu preferi configurar, e ouvi os ruídos, eles diziam pr’eu não me trair. Entendes, enlouquecer. Mas não posso temer a entrega. Tenho fome de mundo, sei que é muito mundo, sou gulosa, vou comer dele, comer de mim. Ruídos grunhidos desesperados por tocar, comunicar. E com um anel desposei o tudo e o nada, o pra sempre e o nunca mais.Por que fiz isso? A pergunta certa é: por que não? Por que não tencionar meu corpo à linha que nos faz calar, e então grunhir como uma pedra-animal-flor-chuva-resto? Dou meu corpo, pra que a terra e todo o resto me coma. Foder com tudo, e silenciar em nada, ainda fodendo. Eu quero construir uma língua contigo. Espero teu consentimento com todos os poros abertos, caso não queiras, emito ruídos e construo um país.
Não dá mais pra esperar, nem desesperar. O amor existe. E quais são os sons do amor?

Te toco,
Eliane

A nossa casa, crescente de fevereiro de 2007.


Caro melhor-amigo:

Há dias tenho conversado com a tua ausência, e então pensei em redigir sobre essas conversas. Há sinais de perigo, bem sabes, mas em carta ao vento, pensei em transformar o desespero em espera, da forma que eu me deixe levar pela correnteza.
Não sinto tristeza nos últimos dias, apenas saudades de ti. Tenho sonhado bastante, principalmente com tua mãe. Ela aparece pra mim quase como um Buda, serena e tão sábia da vida. O passar das horas tem me feito acreditar, apesar do medo, desisti de querer prever. Assim é melhor, se não acabo por chorar demais. Há tanta luz para se banhar, não é?
Encontrei a nossa puta na praia vendendo doces, usando uma saia que mostrava toda a sua linda bunda, me pareceu estar sem calcinha. Ela me cumprimentou, trocamos um lindo sorriso, sem constrangimentos, achei bárbaro. Acabamos nos topando várias vezes sem querer durante o meu passeio com a família... hahaha... foi ótimo, porque enquanto estava tomando sorvete com a minha sobrinha, a minha irmã (puritana), por acaso comprou doces dela... hahaha. Eu amo o senso de humor (negro) da vida.
Cavei fundo, e plantei uma pedra colorida, não sei porque fiz isso, apenas senti vontade que a terra guardasse uma memória minha que não fosse poeira. Ando com vontade de espalhar tesouros pros corajosos que ainda sujam suas mãos de terra. Tirar tudo isso que é meu e não me pertence. Andei pensando em fugir de novo, eu te contei isso em uma das conversas. Na tua ausência tu reagiu um pouco mal, pelo menos não era o que minha imaginação queria, mas nem mesmo minhas fantasias são crias bem mandadas, é difícil ter o controle de tantas crias, não é? Por isso, já nem me espanto tanto quanto antes. Mas voltando ao fugir, é ... eu te contei, e já tinha planejado tudo: tu virias morar aqui, daí eu ia arrumar um emprego no exterior, e sem tu saber, ia passar tudo pro teu nome, e ia embora, e tu só ia saber quando eu estivesse em sampa pronta pra embarcar. Eu ia te ligar, e pedir desculpas, dizer que migrar era um sentimento mais forte.
E não sei, acho que podia ser assim... Eu voltar dois anos depois, com um islandês fluente, e com uma filha adotiva, a Ana Catarina. Hahaha. E foi lindo, porque tu tava muito forte na minha volta, e sozinho, claro, me esperando... hahaha. Estavas mais confiante em ti, mais tranqüilo com a vida. Foi uma boa fuga, esse sonho. Depois não sei, acho que vivemos felizes para sempre, ou eu acabei cansando e dormi.

Para os dias de medo

e aquém dissesse
que
navios não corriam sem vento
eu dei toda razão,
e aquém dissesse
que
sonhar
foi sempre em vão
eu me despeço.

E assim entregue
eu suspeitei
(mas quem me diz? os olhos estão vendados)
e corri para o vento, sonho tormento.

Mas não vou mais te confundir com os meus delírios, está um pouco tarde e fiz uma agenda para amanhã, brincar de compromisso marcado... pra variar um pouco o meu desleixe com a vida adulta.

Forte Abraço,
de quem te ama muito,
Eliane

O mesmo lugar, crescente de fevereiro de 2007.


Caro Vento:

Sem perguntas e lamentos dessa vez, apenas uma boa notícia. Deu certo, os girassóis, mesmo despetalados, giraram pro sol, estou tão excitada por não tê-los decepado. E tem outra coisa também, decidi não mais me unir ao tudo e ao nada, é muito pra mim, eles ainda não sabem, mas logo escreverei noticiando. Sabe, acabei encontrando um lugar na humanidade, pelo menos eu acho. De qualquer forma, apesar de sentir e entender que sou mais um grão de areia entre todo esse lugar, há outras tramas que vibram e também pulsam vida. A coisa tá feia pra essa espécie, e não quero fingir que não sou parte dela. É foda sentir que a palavra humanidade nunca teve muito significado pra mim, mas eu sei o quanto o seu umbiguismo em não crer que também é parte da trama levou muitos seres a esse colapso, e eu sinto, é o ar que eu respiro. E por mais que feche os olhos pro sensacionalismo das pessoas, e tente configurar beleza na sordidez, tem vezes que isso é demais pra mim. O mesmo lugar tem servido de concha pra minha pele, mas não dá mais, todo lugar é mesmo lugar.
Teve as nuvens, há seis luas atrás, ainda estava na estrada com a Biga, eu tentei brincar com elas, tentar ver o máximo de imagens numa só bola de algodão, mas eu só consegui ver o peso delas, quase por despencar do céu. Mas não com a leveza da chuva, mas com dor e ressentimento do chão, das pessoas que entremeiam esses dois espaços. Está tudo tenso, muito tenso, a suavidade do movimento mudou seu sopro. Aliás, já faz um bom tempo que vem mudando (e assim há de ser sempre).
Sei que vais aparecer só na lua que míngua, mas quem sabe, até lá, eu te escreva novamente. Não consigo mais me comunicar através dessas letras por agora.

Bom sonhos,
da sua
Eli.

Esse lugar, crescente de fevereiro de 2007.

Caro Vento:

D’aquilo que insisto em ter como desespero, em teus pés preguiçosos cavo a espera. Então me faço em ti, uma pergunta: será que um dia tudo isso cansará?
E não pergunto mais nada sobre o teu bem estar, ou das saias que te regozija em levantar, a tudo isso assisto, bem sabes. Só que os olhos-poros, que tanto tentam flertar com o tempo, estão trocando de pele. É verão, fim dele, e aquilo que não casou, acaba por abandonar a si próprio. É tempo de troca de fluídos, de transa.
Ontem segui uma lógica semântica, coloquei girassóis para girar sob o sol. Eles murcharam, todos, e em seus lugares ficaram brotos. Pensei em cortar suas cabeças, ainda não estou certa, não é porque elas não possuam pétalas que elas estejam mortas, não é mesmo? Não sei, não sou boa com flores e plantas e animais e humanos e palavras, mas transo, o que é importante, pelo menos foi o que ouvi da última vez que conversamos no mar.
Sobre o casamento, prefiro dizer que seja apenas um noivado. O verão está findando, logo vamos saber o que se há para colher.
Bons Ares.
da sua
Eli